ÁREAS DE INTERESSE: DIREITO, HISTÓRIA , FILOSOFIA (BIOÉTICA) E POLÍTICA.

sábado, 27 de junho de 2015

Caríssimos leitores.
Decidi alimentar o blog com artigos que venho escrevendo e que tem sido publicados em revistas e jornais impressos (inclusive online).
Começo por um que foi publicado em 28 de outubro de 2014, no início das minhas atividades como articulista, em um dos jornais mais respeitáveis da nossa cidade.



A LUTA MILENAR EM PROL DA VERDADE

Desde os primórdios da humanidade a verdade é uma incógnita, motivo pelo qual, aproveito este momento inaugural na condição de articulista do Jornal O Diário, para tratar desse tema.
Para os antigos helênicos a conceituação filosófica da verdade foi objeto de divergência entre distintos grupos de filósofos, como os clássicos, os sofistas, os cínicos, os estoicos e outros, tendo sido a busca do que seria a verdade um dos cardinais motivos do crescimento no campo do pensamento.
Os clássicos e os sofistas travaram uma cardinal guerra intelectual a respeito do que seria a verdade.
Para os Sofistas a expressão da verdade se traduz no que afirmou Marcondes em sua magnífica obra Iniciação à História da Filosofia – dos pré-socráticos a Wittgenstein. 2001: “Tipicamente, em uma discussão na assembleia ninguém detinha a verdade em um sentido completo e absoluto, simplesmente porque isso não seria possível; mas todos tinham suas razões, seus interesses, seus objetivos, procurando defendê-los da melhor forma possível”.
Sócrates, o pai dos clássicos, e ferrenho opositor aos ideais sofistas, defendia a necessidade de uma verdade única e utilizava o método maiêutico para chegar a essa verdade, fazendo com que seus discípulos encontrassem suas próprias verdades.
Na visão de Platão, principal discípulo de Sócrates e também inimigo figadal dos sofistas, a noção de verdade era bastante diferente, tendo ele afirmado: “A filosofia não deve apenas dizer e afirmar, mas preocupar-se em chegar à verdade, à certeza, à clareza, através da razão”.
Já em nosso tempo o jornalista angolano J. Eduardo Agualusa, consolidou através de um personagem de um de seus romances algo que considero bastante instigante e que me deixa ainda mais interessando nesse meu (nosso) dilema: “A grande diferença entre as ditaduras e as democracias está em que no primeiro sistema existe apenas uma verdade imposta pelo poder, ao passo que nos países livres cada pessoa tem o direito de defender a sua própria versão dos acontecimentos. A verdade é uma superstição”.
Outra passagem literária que julgo fantástica foi garimpada por mim na obra do polêmico Morris West, A Estrada Sinuosa, em uma discussão entre o personagem Richard Ashlei, jornalista americano e George Arlequim, na qual este profere as seguintes palavras: “A verdade, meu caro Ashlei, é um luxo permitido àqueles que não sofrem as suas consequências”. Prossegue o referido personagem: “Para que arriscar a vida e criar um caso de consciência em nome da verdade? Será a verdade justificativa suficiente para arriscar a vida? Será uma revolução mais importante do que uma hora passada na praia com uma bela moça? A verdade? Uma dedicação sagrada, mas um serviço mal agradecido. Justiça? Uma deusa cega cuja balança nunca se equilibra perfeitamente. Orgulho? Ambição? Vaidade? Tudo isso tem importância num homem, mas não se explica”.
Mesmo diante desses posicionamentos filosóficos e literários, desabafos dos autores, ou mesmo ficção produzida por eles, ainda nos resta o desafiante dilema. O que é a verdade?

Para citar esse texto:
A LUTA MILENAR EM PROL DA VERDADE - O Diário, 28 outubro de 2014, (BARROS JUNIOR, E. M.)





sábado, 17 de maio de 2014

Artigo publicado em fevereiro de 2014 no prestigiado Jornal Opinio Juris!





terça-feira, 6 de maio de 2014



A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NO BRASIL 1824-1988.

Publicado em 05/2014. 
http://www.oabcampos.org.br/artigo.php?id=159




            Quando tratamos do tema controle de constitucionalidade no ordenamento pátrio, devemos nos atentar para a grande evolução histórica de nossas Cartas Constitucionais desde o Império, transpassando o golpe militar que instaurou a República, o Estado novo, o golpe de 1964 (também militar), que instaurou um regime autoritário no país e durou até 1985, chegando à conquista da Carta da República de 1988.
            Nossa primeira Constituição, a de 1824, vigia ainda na época do Brasil Imperial. Nela não havia controle de constitucionalidade expresso, mas vigorava o que muitos doutrinadores denominam como Dogma da Soberania do Parlamento, que seria basicamente a regra de que os ditames do Parlamento não poderiam ser discutidos por outro poder. É lícito afirmar que, naquela época, a separação dos poderes era rígida.
            Em contribuição a isso, existia o poder moderador, considerado pelos jurisconsultos e pela doutrina como distinto dos três poderes, ou seja, como um quarto poder que tinha como função resolver eventuais conflitos. Este é mais um dos fatos justificantes da ausência do controle de constitucionalidade em nosso ordenamento no período do Brasil Imperial, junto com o dogma da soberania do Parlamento.
            O controle de constitucionalidade surge em nosso país pela primeira vez por influência norte-americana, na Constituição de 1891, mais especificamente o Controle Difuso, que se manteve em todas as Cartas até os dias atuais.
            Em 1934, o que aparece como novidade no cenário constitucional é a previsão de uma ação denominada ADIU Interventiva, ou Representação Interventiva, como chamamos hoje. No texto de 1988, essa ação está prevista no artigo 36, III, que segue[1]:

Art. 36. A decretação da intervenção dependerá:
III de provimento, pelo Supremo Tribunal Federal, de representação do Procurador-Geral da República, na hipótese do art. 34, VII, e no caso de recusa à execução de lei federal. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

            Além disso, outra nova previsão foi a Cláusula de Reserva de Plenário, hoje prevista no artigo 97 da Carta Maior, como demonstramos a seguir[2]:

Art. 97. Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público.

            Por fim, a constituição de 1934 determinava como papel do Senado Federal suspender uma lei que fosse declarada inconstitucional em Controle Difuso, o que, no presente, está disposto no artigo 52, X da Carta da República:

Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:
X - suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal;

Já em 1937, momento histórico cardinal em nosso país, ocorreu o que a doutrina conhece como hipertrofia do Poder Executivo, o que acabou por refletir no esvaziamento do Poder Judiciário, ou seja, do próprio controle de constitucionalidade.
Em razão do artigo 96 da constituição de 1937, esta foi a Carta na qual o controle de constitucionalidade logrou menor projeção.
Após o fim da Segunda Guerra Mundial, surgiu em 1946 um novo Texto Constitucional que de certa maneira representou a redemocratização do Brasil, época em que foi reestabelecido o Controle Judicial de constitucionalidade no país.
É na vigência desse importante Texto Constitucional de transição que aparece pela primeira vez o Controle de constitucionalidade Concentrado, com a Emenda nº 16, no dia 26/11/65, sendo seu exclusivo legitimado o Procurador Geral da República.
O modelo e a ação eram únicos. A ação chamava-se de Representação de Inconstitucionalidade. Esse texto previa também o Controle de constitucionalidade no âmbito do Estado.
Na vigência do Regime Autoritário, imposto pelo golpe militar em 1964, o Brasil ganhou nova constituição. A Magna Carta de 1967 manteve o Controle Difuso (existente desde 1891) e o Controle Concentrado nos mesmos termos da Constituição anterior, mas houve um detalhe que não pode ser deixado para trás: O Controle de Constitucionalidade no âmbito estadual foi retirado.
Em 1969, com o surgimento da Emenda Constitucional nº 1, que pode ser considerada uma nova Constituição, foi reestabelecido o Controle de constitucionalidade Estadual para fins de intervenção.
Com a Carta da República de 1988, houve a ampliação dos legitimados para a propositura da ADI, no rol do artigo 103 do mesmo diploma constitucional, e também aparece a figura do Controle de Constitucionalidade das Omissões Normativas, tendo como as ações com esse objetivo o Mandado de Segurança (MS) e a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO).
Outra novidade que veio com a Carta de 1988 é a ampla previsão do controle no âmbito estadual (Tribunal de Justiça). Surge também a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nos termos da Lei 9882/99 (onze anos depois).
Atualmente as ADPF´s tem tido relevância. Segue alguns exemplos importantes:
a)    ADPF´s, que versaram sobre uniões homo afetivas;
b)    Utilização de pneus usados;
c)    Discussão sobre a não utilização da Lei de Imprensa;
d)    Decisão sobre a impossibilidade de gravidez de feto anencefálico;
e)    Discussões sobre quotas raciais;
f) Entendimento de que é possível a manifestação de pensamento em descriminalização de droga na Marcha da Maconha, etc.

Em continuação, devemos nos atentar para a Emenda Constitucional nº 3 de 1993, que criou a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) e previu que o julgamento dessa ação teria efeito vinculante (é a primeira vez que aparece essa expressão no ordenamento jurídico pátrio), vinculando todos os Juízes do Brasil. Quando a (ADC) surgiu, seus legitimados eram restritos, mas com o surgimento da Emenda Constitucional nº 45/04 seu rol foi ampliado, passando a serem os mesmos que podem propor a (ADI), ou seja, os arrolados no artigo 103 da Constituição Federal vigente:

Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
I - o Presidente da República;
II - a Mesa do Senado Federal;
III - a Mesa da Câmara dos Deputados;
IV - a Mesa de Assembléia Legislativa;
      V - o Governador de Estado;
IV - a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
V - o Governador de Estado ou do Distrito Federal; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
VI - o Procurador-Geral da República;
VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;
VIII - partido político com representação no Congresso Nacional;
IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
§ 1º - O Procurador-Geral da República deverá ser previamente ouvido nas ações de inconstitucionalidade e em todos os processos de competência do Supremo Tribunal Federal.
§ 2º - Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias.
§ 3º - Quando o Supremo Tribunal Federal apreciar a inconstitucionalidade, em tese, de norma legal ou ato normativo, citará, previamente, o Advogado-Geral da União, que defenderá o ato ou texto impugnado.
§ 4.º A ação declaratória de constitucionalidade poderá ser proposta pelo Presidente da República, pela Mesa do Senado Federal, pela Mesa da Câmara dos Deputados ou pelo Procurador-Geral da República. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993)(Revogado pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) (Vide Lei nº 11.417, de 2006).
§ 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
§ 2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade.(Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
§ 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

Essa Emenda constitucional é considerada como a Reforma do judiciário e, a partir dela, a (ADI), ao ser julgada, produz efeito vinculante como consta no artigo 102, § 2º da Carta da República:
Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
§ 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

Consideramos este breve histórico uma forma de visão geral sobre o que traduz o Controle de constitucionalidade no Brasil.

Referências:
1-    Este artigo tem como base aulas do professor Pedro Lenza.

EVANDRO MONTEIRO DE BARROS JUNIOR
ADVOGADO
OAB/RJ-178884
Conciliador e mediador de conflitos
IMARJ






[1] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
[2] Ibidem.

terça-feira, 15 de abril de 2014

QUAL É A NOSSA VERDADE?
Texto publicado no site da OAB 12° subseção - Campos dos Goytacazes - RJ.
http://www.oabcampos.org.br/artigo.php?id=158
Muito já foi discutido nos meios acadêmicos e até mesmo nas rodas de conversas informais sobre o que seria a verdade. Desde os primórdios dos debates humanos, havia sempre em pauta a questão da verdade, tanto para os filósofos, quanto para os sacerdotes, assim como também para os governantes e para os menos abastados de conhecimento acadêmico, aqueles pertencentes à “gleba” [1].
Nas antigas tabernas, onde os cidadãos costumavam se encontrar para beber e sair de suas realidades sofridas do dia a dia, nas feiras das velhas cidades cosmopolitas do antigo mundo, nas grandes festas da política do “panis et circenses” (pão e diversão) já no Império romano, e ao longo de toda a história da humanidade nos grandes centros de encontros populares, pode parecer que não, mas havia e ainda há muito conhecimento e cultura, nos meios de outrora e dos dias do presente, conhecimento empírico, ou seja, derivado de experimento ou de observação da realidade”.
Hoje, a verdade pode ser definida como uma qualificação que “implica o imaginário, a realidade e a ficção, questões centrais tanto em antropologia cultural, artes, filosofia e a própria razão“ [2].
Na antiga Grécia a conceituação filosófica da verdade[3] foi objeto de divergência entre grupos de filósofos distintos, tendo sido também motivo de um grande crescimento no campo do pensamento.
Com a “mudança do sistema político grego da tirania e da oligarquia para a democracia, surgem os sofistas, grupo de filósofos mestres em retórica e oratória, sendo classificados por alguns como filósofos e educadores” [4]. 
Protágoras, pertencente a esse clã, afirmou no início de sua obra sobre a verdade “O homem é a medida de todas as coisas, das que são como são e das que não são como não são[5]”.
Para os Sofistas um exemplo do que seria a expressão da verdade pode ser apresentado por intermédio da seguinte frase: “Tipicamente, em uma discussão na assembleia ninguém detinha a verdade em um sentido completo e absoluto, simplesmente porque isso não seria possível; mas todos tinham suas razões, seus interesses, seus objetivos, procurando defendê-los da melhor forma possível” [6].
Podemos dizer então que, segundo Marcondes: “Os sofistas não ensinavam, portanto o caminho para o conhecimento, para a verdade única que resultaria desse conhecimento, mas para a obtenção de uma “verdade consensual”, resultado da persuasão[7]”.
Sócrates, ferrenho opositor aos ideais sofistas, defendia a necessidade de uma verdade única e utilizava o método maiêutico para chegar a essa verdade.
“Sabe-se que Sócrates não deixou legado escrito para a humanidade, tendo em vista que valorizava, sobretudo, o debate e o ensinamento ministrado oralmente, de maneira que, conhecemos suas ideias através de Platão que foi seu principal discípulo” [8].
O método aplicado por Sócrates, conhecido como maiêutica (a arte de fazer o parto) encontra definição clara conforme sustenta Marcondes: “É importante notar que na concepção socrática, essa melhor compreensão só pode ser resultado de um processo de reflexão do próprio indivíduo, que descobrirá, a partir da sua experiência, o sentido daquilo que busca[9]”.
Para Platão, também opositor figadal aos ideais sofistas, a noção de verdade era bastante diferente. Ele certa vez afirmou: “A filosofia não deve apenas dizer e afirmar, mas preocupar-se em chegar à verdade, à certeza, à clareza, através da razão[10]”.
Existem em cada forma de governo ou regime político, suas formas de conceber a verdade. O jornalista nascido em Huambo (Angola), autor do romance O vendedor de passados, expressa no protagonista do enredo de seu livro a seguinte frase: “A grande diferença entre as ditaduras e as democracias está em que no primeiro sistema existe apenas uma verdade imposta pelo poder, ao passo que nos países livres cada pessoa tem o direito de defender a sua própria versão dos acontecimentos. A verdade é uma superstição” [11].
 Já na obra do polêmico autor Morris West, A Estrada Sinuosa, em uma discussão entre o personagem Richard Ashlei, jornalista americano e George Arlequim, este profere as seguintes palavras “A verdade, meu caro Ashlei, é um luxo permitido àqueles que não sofrem as suas consequências” [12].
O mesmo personagem continua a dissertar sobre a verdade afirmando categoricamente: “Para que arriscar a vida e criar um caso de consciência em nome da verdade? Será a verdade justificativa suficiente para arriscar a vida? Será uma revolução mais importante do que uma hora passada na praia com uma bela moça? A verdade? Uma dedicação sagrada, mas um serviço mal agradecido. Justiça? Uma deusa cega cuja balança nunca se equilibra perfeitamente. Orgulho? Ambição? Vaidade? Tudo isso tem importância num homem, mas não se explica” [13].
O conteúdo magnífico de As aventuras de Pinóquio, de Carlo Collodi, brilhantemente produzido como   longa-metragem de animação pelos Estúdios Disney no ano de 1940, reflete o pensamento social ocidental do século XX a respeito desse tema. A punição pela mentira e o perdão ao final da história.
Conversando com pessoas do povo sempre nos deparamos com algumas frases que não sabemos quem criou, mas que estão constantemente presentes em nossas vidas, como: “quem diz a verdade, não merece castigo”, “nem todas as verdades são pra serem ditas”, “a verdade é manca, mas chega sempre a tempo”, entre outras.
É possível concluir, a partir de todo o exposto, que nascemos em um meio repleto de mentiras, mas somos “educados” para sermos “polidos”, ou seja, civilizados, aprendendo que mentir é feio, e quando mentimos somos punidos por nossos pais. Assim, podemos então afirmar que ao contrário das assertivas aqui propostas, vige em nossa sociedade atual a crença de que a verdade é tardia e quase sempre nos falta.
REFERÊNCIAS
1-     Morris West. A Estrada Sinuosa. Editora Record. 1957.
2-     Dicionário Aurélio da Lingua Portuguesa. 5° edição. Editora Positivo. 2010.
4-     Grande enciclopédia Larrousse Cultural. Editora Nova Cultural Ltda. 1998.1995.
5-     Evandro Monteiro de Barros Jr. A busca da verdade real nos processos civis (Brasil: 1988-2011). Monografia indicada para publicação na Biblioteca da Faculdade de Direito de Campos – UNIFLU. 2011.
6-     Danilo Marcondes . Iniciação à História da Filosofia – dos pré-socráticos a Wittgenstein. 2001, p. 43.
7-     José Eduardo Agualusa. O vendedor de passados. Editora. Gryphus. RJ. 2004.
8-     Ditos populares.

[1] Terreno, feudo a que os servos estavam adscritos. Definição oriunda do Dicionário Aurélio.
[2] http://pt.wikipedia.org/wiki/Verdade
[3] Objeto central da reflexão filosófica, fio condutor em relação ao qual, em última instância, se definem, se aproximam e divergem as escolas filosóficas. Definição oriunda do Dicionário Aurélio.
[5]  Marcondes, D. Iniciação à História da Filosofia – dos pré-socráticos a Wittgenstein. 2001, p. 43.
[6] Ibidem.
[7] PLATÃO apud MARCONDES, 2001 p. 48.
[8] Monteiro de Barros Jr, Evandro. A busca da verdade real nos processos civis (Brasil: 1988-2011). Monografia indicada para publicação na Biblioteca da Faculdade de Direito de Campos – UNIFLU. 2011.
[9] MARCONDES, D. Iniciação à História da Filosofia – dos pré-socráticos a Wittgenstein. 2001, p. 47.
[10] Ibidem, p. 52.
[11] Agualusa, José Eduardo. O vendedor de passados. P.75. Editora. Gryphus. RJ. 2004.
[12] West, Morris. A Estrada Sinuosa. Editora Record. 1957. P. 21.
[13] Ibidem, P.24 e 25.

Evandro Monteiro de Barros Junior

Natural do Rio de Janeiro, quando adolescente interessou-se e estudou um pouco de teatro e música. Realizou intercâmbio cultural na Alemanha na cidade de Norden (Niedersachsen), tendo estudado um ano na UlrichsGymnasium. Lecionou línguas no Curso Hi idiomas em Cabo frio - RJ e trabalhou como assistente da diretoria na empresa multinacional Schulz América Latina. Sempre envolvido com a leitura, (sobre diversas áreas) como poesia, romances e livros didáticos, optou pela formação jurídica. Concluiu o curso de Direito na Faculdade de Direito de Campos – UNIFLU. Obteve nota máxima na defesa da monografia intitulada A BUSCA DA VERDADE REAL NOS PROCESSOS CIVIS (BRASIL: 1988-2011), indicada para publicação na biblioteca da mesma faculdade em 2011. É advogado militante no Estado do Rio de Janeiro, conciliador e mediador de conflitos – IMARJ. Teve artigos sobre ética, política direito e filosofia publicados no Jornal Lagos Online de Cabo Frio-RJ e no Jornal Jurídico "Opinio Juris" de Campos dos Goytacazes-RJ.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

CAROS LEITORES! 
RETOMAMOS NOSSOS TRABALHOS COM A APRESENTAÇÃO DE UM CONTO DE MACHADO DE ASSIS. TENHAM UMA BOA LEITURA. 

 A SERENÍSSIMA REPÚBLICA (Conferência do cônego Vargas) Meus senhores, Antes de comunicar-vos uma descoberta, que reputo de algum lustre para o nosso país, deixai que vos agradeça a prontidão com que acudisses ao meu chamado. Sei que um interesse superior vos trouxe aqui; mas não ignoro também, — e fora ingratidão ignorá-lo, — que um pouco de simpatia pessoal se mistura à vossa legítima curiosidade científica. Oxalá possa eu corresponder a ambas. Minha descoberta não é recente; data do fim do ano de 1876. Não a divulguei então, — e, a não ser o Globo, interessante diário desta capital, não a divulgaria ainda agora, — por uma razão que achará fácil entrada no vosso espírito. Esta obra de que venho falar-vos, carece de retoques últimos, de verificações e experiências complementares. Mas o Globo noticiou que um sábio inglês descobriu a linguagem fônica dos insetos, e cita o estudo feito com as moscas. Escrevi logo para a Europa e aguardo as respostas com ansiedade. Sendo certo, porém, que pela navegação aérea, invento do padre Bartolomeu, é glorificado o nome estrangeiro, enquanto o do nosso patrício mal se pode dizer lembrado dos seus naturais, determinei evitar a sorte do insigne Voador, vindo a esta tribuna, proclamar alto e bom som, à face do universo, que muito antes daquele sábio, e fora das ilhas britânicas, um modesto naturalista descobriu coisa idêntica, e fez com ela obra superior. Senhores, vou assombrar-vos, como teria assombrado a Aristóteles, se lhe perguntasse: Credes que se possa dar um regime social às aranhas? Aristóteles responderia negativamente, com vós todos, porque é impossível crer que jamais se chegasse a organizar socialmente esse articulado arisco, solitário, apenas disposto ao trabalho, e dificilmente ao amor. Pois bem, esse impossível fi-lo eu. Ouço um riso, no meio do sussurro de curiosidade. Senhores, cumpre vencer os preconceitos. A aranha parece-vos inferior, justamente porque não a conheceis. Amais o cão, prezais o gato e a galinha, e não advertis que a aranha não pula nem ladra como o cão, não mia como o gato, não cacareja como a galinha, não zune nem morde como o mosquito, não nos leva o sangue e o sono como a pulga. Todos esses bichos são o modelo acabado da vadiação e do parasitismo. A mesma formiga, tão gabada por certas qualidades boas, dá no nosso açúcar e nas nossas plantações, e funda a sua propriedade roubando a alheia. A aranha, senhores, não nos aflige nem defrauda; apanha as moscas, nossas inimigas, fia, tece, trabalha e morre. Que melhor exemplo de paciência, de ordem, de previsão, de respeito e de humanidade? Quanto aos seus talentos, não há duas opiniões. Desde Plínio até Darwin, os naturalistas do mundo inteiro formam um só coro de admiração em torno desse bichinho, cuja maravilhosa teia a vassoura inconsciente do vosso criado destrói em menos de um minuto. Eu repetiria agora esses juízos, se me sobrasse tempo; a matéria, porém, excede o prazo, sou constrangido a abreviá-la. Tenho-os aqui, não todos, mas quase todos; tenho, entre eles, esta excelente monografia de Büchner, que com tanta subtileza estudou a vida psíquica dos animais. Citando Darwin e Büchner, é claro que me restrinjo à homenagem cabida a dois sábios de primeira ordem, sem de nenhum modo absolver (e as minhas vestes o proclamam) as teorias gratuitas e errôneas do materialismo. Sim, senhores, descobri uma espécie araneida que dispõe do uso da fala; coligi alguns, depois muitos dos novos articulados, e organizei-os socialmente. O primeiro exemplar dessa aranha maravilhosa apareceu-me no dia 15 de dezembro de 1876. Era tão vasta, tão colorida, dorso rubro, com listras azuis, transversais, tão rápida nos movimentos, e às vezes tão alegre, que de todo me cativou a atenção. No dia seguinte vieram mais três, e as quatro tomaram posse de um recanto de minha chácara. Estudei-as longamente; achei-as admiráveis. Nada, porém, se pode comparar ao pasmo que me causou a descoberta do idioma araneida, uma língua, senhores, nada menos que uma língua rica e variada, com a sua estrutura sintáxica, os seus verbos, conjugações, declinações, casos latinos e formas onomatopaicas, uma língua que estou gramaticando para uso das academias, como o fiz sumariamente para meu próprio uso. E fi-lo, notai bem, vencendo dificuldades aspérrimas com uma paciência extraordinária. Vinte vezes desanimei; mas o amor da ciência dava-me forças para arremeter a um trabalho que, hoje declaro, não chegaria a ser feito duas vezes na vida do mesmo homem. Guardo para outro recinto a descrição técnica do meu arácnide, e a análise da língua. O objeto desta conferência é, como disse, ressalvar os direitos da ciência brasileira, por meio de um protesto em tempo; e, isto feito, dizer-vos a parte em que reputo a minha obra superior à do sábio de Inglaterra. Devo demonstrá-lo, e para este ponto chamo a vossa atenção. Dentro de um mês tinha comigo vinte aranhas; no mês seguinte cinqüenta e cinco; em março de 1877 contava quatrocentas e noventa. Duas forças serviram principalmente à empresa de as congregar: — o emprego da língua delas, desde que pude discerni-la um pouco, e o sentimento de terror que lhes infundi. A minha estatura, as vestes talares, o uso do mesmo idioma, fizeram-lhes crer que era eu o deus das aranhas, e desde então adoraram-me. E vede o benefício desta ilusão. Como as acompanhasse com muita atenção e miudeza, lançando em um livro as observações que fazia, cuidaram que o livro era o registro dos seus pecados, e fortaleceram-se ainda mais na prática das virtudes. A flauta também foi um grande auxiliar. Como sabeis, ou deveis saber, elas são doidas por música. Não bastava associá-las; era preciso, dar-lhes um governo idôneo. Hesitei na escolha; muitos dos atuais pareciam-me bons, alguns excelentes, mas todos tinham contra si o existirem. Explico-me. Uma forma vigente de governo ficava exposta a comparações que poderiam amesquinhá-la. Era-me preciso, ou achar uma forma nova, ou restaurar alguma outra abandonada. Naturalmente adotei o segundo alvitre, e nada me pareceu mais acertado do que uma república, à maneira de Veneza, o mesmo molde, e até o mesmo epíteto. Obsoleto, sem nenhuma analogia, em suas feições gerais, com qualquer outro governo vivo, cabia-lhe ainda a vantagem de um mecanismo complicado, — o que era meter à prova as aptidões políticas da jovem sociedade. Outro motivo determinou a minha escolha. Entre os diferentes modos eleitorais da antiga Veneza, figurava o do saco e bolas, iniciação dos filhos da nobreza no serviço do Estado. Metiam-se as bolas com os nomes dos candidatos no saco, e extraía-se anualmente um certo número, ficando os eleitos desde logo aptos para as carreiras públicas. Este sistema fará rir aos doutores do sufrágio; a mim não. Ele exclui os desvarios da paixão, os desazos da inépcia, o congresso da corrupção e da cobiça. Mas não foi só por isso que o aceitei; tratando-se de um povo tão exímio na fiação de suas teias, o uso do saco eleitoral era de fácil adaptação, quase uma planta indígena. A proposta foi aceita. Sereníssima República pareceu-lhes um título magnífico, roçagante, expansivo, próprio a engrandecer a obra popular. Não direi, senhores, que a obra chegou à perfeição, nem que lá chegue tão cedo. Os meus pupilos não são os solários de Campanela ou os utopistas de Morus; formam um povo recente, que não pode trepar de um salto ao cume das nações seculares. Nem o tempo é operário que ceda a outro a lima ou o alvião; ele fará mais e melhor do que as teorias do papel, válidas no papel e mancas na prática. O que posso afirmar-vos é que, não obstante as incertezas da idade, eles caminham, dispondo de algumas virtudes, que presumo essenciais à duração de um Estado. Uma delas, como já disse, é a perseverança, uma longa paciência de Penélope, segundo vou mostrar-vos. Com efeito, desde que compreenderam que no ato eleitoral estava a base da vida pública, trataram de o exercer com a maior atenção. O fabrico do saco foi uma obra nacional. Era um saco de cinco polegadas de altura e três de largura, tecido com os melhores fios, obra sólida e espessa. Para compô-lo foram aclamadas dez damas principais, que receberam o título de mães da república, além de outros privilégios e foros. Uma obra-prima, podeis crê-lo. O processo eleitoral é simples. As bolas recebem os nomes dos candidatos, que provarem certas condições, e são escritas por um oficial público, denominado "das inscrições". No dia da eleição, as bolas são metidas no saco e tiradas pelo oficial das extrações, até perfazer o número dos elegendos. Isto que era um simples processo inicial na antiga Veneza, serve aqui ao provimento de todos os cargos. A eleição fez-se a princípio com muita regularidade; mas, logo depois, um dos legisladores declarou que ela fora viciada, por terem entrado no saco duas bolas com o nome do mesmo candidato. A assembléia verificou a exatidão da denúncia, e decretou que o saco, até ali de três polegadas de largura, tivesse agora duas; limitando-se a capacidade do saco, restringia-se o espaço à fraude, era o mesmo que suprimi-la. Aconteceu, porém, que na eleição seguinte, um candidato deixou de ser inscrito na competente bola, não se sabe se por descuido ou intenção do oficial público. Este declarou que não se lembrava de ter visto o ilustre candidato, mas acrescentou nobremente que não era impossível que ele lhe tivesse dado o nome; neste caso não houve exclusão, mas distração. A assembléia, diante de um fenômeno psicológico inelutável, como é a distração, não pôde castigar o oficial; mas, considerando que a estreiteza do saco podia dar lugar a exclusões odiosas, revogou a lei anterior e restaurou as três polegadas. Nesse ínterim, senhores, faleceu o primeiro magistrado, e três cidadãos apresentaram-se candidatos ao posto, mas só dois importantes, Hazeroth e Magog, os próprios chefes do partido retilíneo e do partido curvilíneo. Devo explicar-vos estas denominações. Como eles são principalmente geômetras, é a geometria que os divide em política. Uns entendem que a aranha deve fazer as teias com fios retos, é o partido retilíneo; — outros pensam, ao contrário, que as teias devem ser trabalhadas com fios curvos, — é o partido curvilíneo. Há ainda um terceiro partido, misto e central, com este postulado: — as teias devem ser urdidas de fios retos e fios curvos; é o partido reto-curvilíneo; e finalmente, uma quarta divisão política, o partido anti-retocurvilíneo, que fez tábua rasa de todos os princípios litigantes, e propõe o uso de umas teias urdidas de ar, obra transparente e leve, em que não há linhas de espécie alguma. Como a geometria apenas poderia dividi-los, sem chegar a apaixoná-los, adotaram uma simbólica. Para uns, a linha reta exprime os bons sentimentos, a justiça, a probidade, a inteireza, a constância etc., ao passo que os sentimentos ruins ou inferiores, como a bajulação, a fraude, a deslealdade, a perfídia, são perfeitamente curvos. Os adversários respondem que não, que a linha curva é a da virtude e do saber, porque é a expressão da modéstia e da humildade; ao contrário, a ignorância, a presunção, a toleima, a parlapatice, são retas, duramente retas. O terceiro partido, menos anguloso, menos exclusivista, desbastou a exageração de uns e outros, combinou os contrastes, e proclamou a simultaneidade das linhas como a exata cópia do mundo físico e moral. O quarto limita-se a negar tudo. Nem Hazeroth nem Magog foram eleitos. As suas bolas saíram do saco, é verdade, mas foram inutilizadas, a do primeiro por faltar a primeira letra do nome, a do segundo por lhe faltar a última. O nome restante e triunfante era o de um argentário ambicioso, político obscuro, que subiu logo à poltrona ducal, com espanto geral da república. Mas os vencidos não se contentaram de dormir sobre os louros do vencedor; requereram uma devassa. A devassa mostrou que o oficial das inscrições intencionalmente viciara a ortografia de seus nomes. O oficial confessou o defeito e a intenção; mas explicou-os dizendo que se tratava de uma simples elipse; delito, se o era, puramente literário. Não sendo possível perseguir ninguém por defeitos de ortografia ou figuras de retórica, pareceu acertado rever a lei. Nesse mesmo dia ficou decretado que o saco seria feito de um tecido de malhas, através das quais as bolas pudessem ser lidas pelo público, e, ipso facto, pelos mesmos candidatos, que assim teriam tempo de corrigir as inscrições. Infelizmente, senhores, o comentário da lei é a eterna malícia. A mesma porta aberta à lealdade serviu à astúcia de um certo Nabiga, que se conchavou com o oficial das extrações, para haver um lugar na assembléia. A vaga era uma, os candidatos três; o oficial extraiu as bolas com os olhos no cúmplice, que só deixou de abanar negativamente a cabeça, quando a bola pegada foi a sua. Não era preciso mais para condenar a idéia das malhas. A assembléia, com exemplar paciência, restaurou o tecido espesso do regime anterior; mas, para evitar outras elipses, decretou a validação das bolas cuja inscrição estivesse incorreta, uma vez que cinco pessoas jurassem ser o nome inscrito o próprio nome do candidato. Este novo estatuto deu lugar a um caso novo e imprevisto, como ides ver. Tratou-se de eleger um coletor de espórtulas, funcionário encarregado de cobrar as rendas públicas, sob a forma de espórtulas voluntárias. Eram candidatos, entre outros, um certo Caneca e um certo Nebraska. A bola extraída foi a de Nebraska. Estava errada, é certo, por lhe faltar a última letra; mas, cinco testemunhas juraram, nos termos da lei, que o eleito era o próprio e único Nebraska da república. Tudo parecia findo, quando o candidato Caneca requereu provar que a bola extraída não trazia o nome de Nebraska, mas o dele. O juiz de paz deferiu ao peticionário. Veio então um grande filólogo, — talvez o primeiro da república, além de bom metafísico, e não vulgar matemático, — o qual provou a coisa nestes termos: — Em primeiro lugar, disse ele, deveis notar que não é fortuita a ausência da última letra do nome Nebraska. Por que motivo foi ele inscrito incompletamente? Não se pode dizer que por fadiga ou amor da brevidade, pois só falta a última letra, um simples a. Carência de espaço? Também não; vede: há ainda espaço para duas ou três sílabas. Logo, a falta é intencional, e a intenção não pode ser outra, senão chamar a atenção do leitor para a letra k, última escrita, desamparada, solteira, sem sentido. Ora, por um efeito mental, que nenhuma lei destruiu, a letra reproduz-se no cérebro de dois modos, a forma gráfica e a forma sônica: k e ca. O defeito, pois, no nome escrito, chamando os olhos para a letra final, incrusta desde logo no cérebro, esta primeira sílaba: Ca. Isto posto, o movimento natural do espírito é ler o nome todo; volta-se ao princípio, à inicial ne, do nome Nebrask. — Cané. — Resta a sílaba do meio, bras, cuja redução a esta outra sílaba ca, última do nome Caneca, é a coisa mais demonstrável do mundo. E, todavia, não a demonstrarei, visto faltar-vos o preparo necessário ao entendimento da significação espiritual ou filosófica da sílaba, suas origens e efeitos, fases, modificações, conseqüências lógicas e sintáxicas, dedutivas ou indutivas, simbólicas e outras. Mas, suposta a demonstração, aí fica a última prova, evidente, clara, da minha afirmação primeira pela anexação da sílaba ca às duas Cane, dando este nome Caneca. A lei emendou-se, senhores, ficando abolida a faculdade da prova testemunhal e interpretativa dos textos, e introduzindo-se uma inovação, o corte simultâneo de meia polegada na altura e outra meia na largura do saco. Esta emenda não evitou um pequeno abuso na eleição dos alcaides, e o saco foi restituído às dimensões primitivas, dando-se-lhe, todavia, a forma triangular. Compreendeis que esta forma trazia consigo, uma conseqüência: ficavam muitas bolas no fundo. Daí a mudança para a forma cilíndrica; mais tarde deu-se-lhe o aspecto de uma ampulheta, cujo inconveniente se reconheceu ser igual ao triângulo, e então adotou-se a forma de um crescente etc. Muitos abusos, descuidos e lacunas tendem a desaparecer, e o restante terá igual destino, não inteiramente, decerto, pois a perfeição não é deste mundo, mas na medida e nos termos do conselho de um dos mais circunspectos cidadãos da minha república, Erasmus, cujo último discurso sinto não poder dar-vos integralmente. Encarregado de notificar a última resolução legislativa às dez damas incumbidas de urdir o saco eleitoral, Erasmus contou-lhes a fábula de Penélope, que fazia e desfazia a famosa teia, à espera do esposo Ulisses. — Vós sois a Penélope da nossa república, disse ele ao terminar; tendes a mesma castidade, paciência e talentos. Refazei o saco, amigas minhas, refazei o saco, até que Ulisses, cansado de dar às pernas, venha tomar entre nós o lugar que lhe cabe. Ulisses é a Sapiência.